sábado, 3 de maio de 2008

Retrato


Sentou ansiosa no sofá, ajeitou-se cruzando e descruzando as pernas. O telefone não tocava. Resolveu esperar mais um pouco. A porta permanecia fechada. O esmalte vermelho das unhas canhotas desfazia-se sob a força das rivais destras. A campainha não tocava. Ele não ligava. Ergueu-se do sofá, correu à cozinha, abriu a geladeira. Fechou. Sentou para tomar sorvete de flocos. Parecia faminta. Repetiu. Voltou para a sala. Nenhuma notícia. Aguardou. As unhas começaram a ser torturadas. Os dentes afiados arrancavam-nas dos dedos nervosos. Tirou as sandálias dos pés. Acendeu um cigarro. Pensou na discussão que tivera com o namorado. Terminaram o relacionamento há dois dias. Por que ele não ligava? Talvez ela não tivesse mais uma outra chance. Levantou do sofá. Pegou uma garrafa de whisky. Bebeu uma dose. Depois duas, três, quatro. O telefone não tocava. Voltou para sala. Alguém bateu na porta. Correu. Abriu. Ninguém. Quem teria sido? Fechou a porta. Olhou ao seu redor encontrando um retrato sobre a mesa. Era ele. Agarrou-o contra os seios. Chorou. Estava fora de si. Ajoelhou pedindo para que ele ligasse. A garrafa de whisky permaneceu grudada em sua mão. Bebeu mais um pouco. Conversou com o retrato. A garrafa esvaziou-se ao meio. Jogou-a contra a parede. Os pedaços de vidro espalharam-se no chão como uma neblina. Ela não percebeu os cortes que eles provocaram em sua pele embriagada. O resto de bebida banhou o sofá sujo como chuva. Procurou a cartela de cigarro. Não conseguiu levantar-se do chão. Sentia-se cheiro de álcool por todos os locais da sala. Sentia-se cheiro de derrota. Sentia-se cheiro de infelicidade. Arrastou-se ao encontro do cigarro. Levou consigo o retrato amassado contra os seios. Onde estaria o isqueiro? Achou. Estava sobre o sofá banhado. Esticou o braço tentando alcançá-lo. Os dedos trêmulos tocaram no isqueiro azul. Conseguiu encostar-se no sofá após muito esforço. Acendeu o cigarro. Olhou para a chama produzida. Levantou à altura dos olhos. Jogou o cigarro. Segurou firme o retrato com a mão esquerda, aproximando-o do fogo. A chama consumiu em desespero a imagem dele. Em poucos segundos, formou-se um pequeno incêndio em suas mãos. Não percebeu a dor do calor. Estava aflita, implorando para si mesma que o telefone tocasse. Deixou cair o retrato sobre o sofá. Encostou-se. A chama amarela animou-se ao ver o resto de whisky. Não perdoou. o fogo espalhou-se. Ela embebeu-se com a fumaça. Deitou. Desesperou-se. Chorou. Gritou para dentro de si. Estava sem fôlego. Implorava por uma ajuda. Implorava para que ele voltasse. O seu grande amor se foi. Não o veria novamente. Onde estaria? O calor estava consumindo a sala. Consumindo os móveis. Consumindo tudo. Encostou a cabeça no chão. Estava sem força. Tentou levantar-se. Não podia. Começou a ouvir o telefone tocar. Era ele! Esticou o braço. Em vão. Tudo foi desaparecendo à sua frente. Faltava luz. Faltava vida. O telefone continuava tocando. Deitou como um anjo derramando uma lágrima. O fogo espalhou-se. A campainha começou a tocar. Bateram na porta. Derrubaram-na. Era ele! Ela podia vê-lo por trás do incêndio.
Repousou, como uma deusa, sussurrando contra o chão:
- Meu amor, eu te amo.
Desmaiou.


David Cid

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