sábado, 3 de maio de 2008

Concentração


Casa negra. Portas rígidas rachadas. Ele não quer entrar, mas deve. O medo se fez carne. A onomatopéia das dobradiças assusta, lembrando o lento caminhar da solidão. Teias de aranha ofuscantes guardavam o local. Ele foi o primeiro a entrar, os outros acompanharam-no. Saudade. Conseguia ouvir o grito de sua filha furtada. O barulho embaraçoso das correntes doía, como um hino fúnebre. Melodia para os mortos. Música para a morte. Empurraram-no. Derrubaram-no. Aprisionaram-no. Ouvia-se medo. Fixou os olhos no passado, sentindo o último beijo da esposa. Suas mãos trêmulas ainda sentiam a respiração ofegante da caçula. Os pés adormeciam querendo repousar. Narinas ensangüentadas percebiam o gosto enferrujado do ar. A dor anunciava a prisão. O local encheu-se do odor insuportável da gasolina. Os dedos mortos datilografavam sobre o líquido entorpecente. A força do abdome tentava ajudá-los a fugirem do excessivo calor. O fogo comemorava consumindo a casa, e as portas largas gritavam querendo viver. O inferno fez-se presente. Os tecidos do corpo resistiam ao desgaste. Como bruxas medievais, sublimavam. O deus amarelo, cada vez mais faminto, devorava o tudo. Não perdoava. O medo foi desaparecendo, deixando os seus donos. As correntes permaneciam. Pareciam iradas. O teto simulava força. Desabou. Esmagou o deus raivoso. Sufocando-o.


David Cid

Nenhum comentário: