domingo, 14 de setembro de 2008

Por algum momento


Ele desejava apenas descansar, permanecer apoiado sobre si mesmo. Olhou para trás após ouvir uma voz. Lembrou-se de que estava só. Quem seria o dono daquela voz? Indistinguível. Rabiscou o chão com um giz. Escreveu cinco letras, que representavam talvez o seu nome. Quatro paredes cercavam-no. Habilidosamente protegiam-no, afastando-o do exterior. Arranhou, portanto, a pintura daquela prisão. Faltava algum tempo para a liberdade. Talvez nem soubesse disso. Rasgou a roupa. Sentiu-se bem. Olhou para trás e lá trás, bem lá trás, o corpo desfazia-se em um ritmo descontrolado. Despedia-se daquele lugar. Adeus, bom mundo! Aonde iria? Começou a escalar aquela parede pálida, intacta e imponente. Escorregou cada passo sobre ela. Apontou a direção a seguir. Era o fim ou o início de uma história. Uma história de louco! Do outro lado do mato, havia uma estrada, e foi lá onde tudo começou. Era uma vez um pequeno jardim, todo florido por flores bem floridas... Não, num é assim, não! Era uma vez uma menina bem pequena que andava toda torta com uma torta toda torta na mão torta... Conta, papai! Conta, papai! Cala a boca! Não lembro!Era uma vez um passarinho bonitinho, amarelinho, de biquinho rosadinho, que esperava todos os dias por um dono riquinho... Não, não lembro! O fim daquele deserto era a duas léguas dali. Saindo pela porta de trás da prisão, tem que descer a serra em direção ao oeste, lá ela estará esperando. Ela tem que tá, sim! Ela disse que me esperaria. Acorda! Acorda! Acorda! Levanta daí! Tudo tá quase acabando! Oh minha filha, levanta daí, por favor! Olhou a pele dela suja de areia, toda enferrujada. Mas resolveu deixá-la ali mesmo. Foi quando chegaram e levaram-no para aquele lugar. Desesperava-se para sair! Ela estará muito linda, vamos dançar valsa por toda noite. A minha mulher é bela! Era uma vez a bela e a fera! Não! Eles até disseram isso, mas não sou uma fera! Eu sou um príncipe encantado! Irei salvar-te, minha donzela solitária! Estou quase saindo daqui! As unhas rasgavam a pele branca dele. De repente, um portão preto abriu sob os seus olhos. Era a presença marcante dele. Ele não vai conseguir me matar! Não vai! Lá fora, tinha um rio largo por onde atravessaria a nado mesmo, apesar do perigo. Tentou fugir, mas seguravam-no. Empurravam-no. Amarravam-no! Socorro! As mãos ficavam tão apertadas que se arroxeavam. Ficavam para trás bem unidas e grudadas nas costas dele. Vou-me embora! Na minha casa sou filho do rei! Vou quebrar essa parede quadrada e vou fugir! Olha o que estou dizendo: eu vou fugir! Cala boca, seu burro! Posso te contar um segredo? Era uma vez um... mas se eu te contar, tu promete que num conta pra ninguém? Vou empurrar esse guarda, pegar a sua chave, abrir o portão e correr e correr e correr. É tão fácil, facinho, facinho! Ei, é muito facinho! Não! num vão me ver não! Eu juro! Aí, volto e levo vocês! De repente dormia, como um anjo dormia! Os dias todos dormiam! Adormeciam! Era o momento de esperar o vento informar a direção do novo caminho. Um longo caminho que se formará, em breve, à sua frente, quando aquilo tudo acabar...

David Cid

sábado, 3 de maio de 2008

Pequeno conto


A pobre da empregada ficou toda estatalada no chão depois de cair da escada. Mesmo depois de cair da escada, a teia de aranha quieta continuava no canto da parede, bem grudada, desocupada e abandonada.
Toda aleijada levantou-se às pressas, desorientada, quando a patroa gritou descontrolada:
- Levanta preguiçosa, porque isso não são horas de nêga ta dormindo!


David Cid

O vilão


O escritor desistiu de dar um fim trágico à menina. Preferiu que ela sobrevivesse ao assassinato. Rasgou a parte do livro que falava da morte dela. Mesmo sabendo disso, o vilão decidiu desrespeitar o autor e empurrou a pequena menina do sexto andar.
Foi por isso que ela morreu.
No entanto, ele culpou o escritor pelo fim trágico da menina.
Por isso, ele não foi preso.
***

PS. No fim da história, todos foram ao enterro da menina, até mesmo o vilão que se tornou escritor e o escritor que se tornou vilão.


David Cid

Uma conclusão qualquer




Um certo dia, procurou a sua velha mochila, colocou nas costas e, por muitos anos, passo a passo, foi seguindo caminho, cantando uma velha música e relembrando os tempos de sua mocidade.


David Cid

Linhas preenchidas



Um dia, os teus passos cruzaram o meu horizonte

Sim, ofuscaram a minha visão!

Lembro quando a tua imagem invadiu o meu ser.

Não entendi o teu súbito surgimento.

Donzela inesperada, refaz, portanto, o meu passado.

Volta à minha frente e inspira a contrução da minha vontade.


David Cid

Mesmo discurso



- Silêncio!
Vez por outra tentava loucamente calar a própria voz.
- Silêncio!
Vez por outra tentavam loucamente calar aquela voz.
- Feche a porta!
A coitada da empregada espantava-se espantada e resmungava.
- Cale a boca!
Resmungava e resmungava.
- Cale a boca! Calaaaa bocaaaa!
Resmungava, resmungava e resmungava.
-... e feche a porta!
E de porta em porta, resmungava, resmungava, resmungava e resmungava...


David Cid

Bem distante




Saltou uma onda; depois, outra, outra e outra. Outra e, por fim, duas outras. O cacho de uva não durou e não saltou. Forçadamente, foi jogado sobre as rochas. Parte de si agarrou à roupa branca, que se confundia com a espuma salgada. Apenas uma luz o guiava. Os pés, então, cada vez menos tocavam grãos ou pedras, o que o fez escutar cada vez mais a voz da água.
...e foi quando, longe dali, curiosos ainda duvidosos, em vão, estiveram imóveis para os cumprimentos.


David Cid

Entre rabiscos




Longe de mim
por um instante
meus olhos estiveram
aos pés dos teus olhos
Ó sublime existência
permita-me conhecer a tua
companhia e o atalho do teu esconderijo.
Aproxima-te de mim!
Vê o meu rosto
E, por fim, chama a ti a minha presença.


David Cid

Profunda Lembrança





Os dois despediram-se com um abraço e com um sorriso. Em vez de pegadas, deixaram lágrimas. Um permaneceu na calçada no momento em que o outro atravessava a rua. Este, o mais novo, ao chegar à sua casa, fechou os olhos para descansar o corpo e, então, organizar os pensamentos.
Véspera de Natal, e o seu ano ainda estava longe do fim. Contou nos dedos os anos e descobriu que já haviam passado dezenove, desde a última notícia do pai. Enquanto acompanhava o ponteiro maior do relógio de pulso, o irmão, sentado no chão da sala, superava mais um desafio ao cortar papel com a tesoura..
Tentou escrever cada lembrança que surgia uma após outra em meio à escuridão do olhar e descrever o significado intenso da saudade que lhe doía o peito. Como seria bom se pudesse ouvir novamente o barulho daquele sino, segurar aquela suave mão, caminhar leves passos lentos sobre aquela calçada vazia e encostada no muro branco e, por último, andar imaginando como seria o resto da tarde após a Igreja.
Um pequeno sorriso, contrastando com a angústia de seu interior, expressou a indesejada solidão. Estava imóvel, talvez isso o permitiu ouvir as vozes que atravessavam a janela às cinco da tarde. Eram três crianças e duas babás esperando chegar a hora de vestir as roupas novas compradas. Nesse intervalo, como um enfermo, sugou lentamente o ar para o interior, tornando-se, portanto, maior. Sentiu a força e, ao mesmo tempo, a fragilidade, pois o ar logo em seguida retornou ao local de origem.
As recordações de sua memória foram se esgotando e o espaço por elas ocupado foi preenchido por um choro expulso da alma. As vozes da janela desapareceram, e a ausência surgiu. O irmão, na sala, dormia curvado sob o silêncio da noite. As lágrimas perfuraram o ar em busca de repouso no chão do quarto pequeno. Em seguida, após três passos, uma mão tocou o seu cabelo e a outra segurou firme o seu ombro. Sentiu quando a saudade foi transformada em perdão.
Não hesitou!
Abriu os olhos para descansar a alma e, então, contemplar o Natal.


David Cid

O muro

1
Ele o apertou firme, entre as mãos, antes de tomar a maior decisão de sua vida.
2
Estava na varanda, quando resolveu se aproximar lentamente do muro.
3
Encheu o peito em um gesto ousado e expôs nitidamente o seu medo.
4
Uniu toda a sua força e, enfim, arremessou a chupeta por cima do muro.
***
Uma nova vida começou...

- Pronto, mamãe! Cadê minha bicicleta?


David Cid

Longa Espera


Eu teria conseguido se não fosse o tempo
culpa minha ou culpa dele? Eu não sei!
Apenas sei, simplesmente sei que o trem
[voltará
e me levará de encontro ao meu destino.
O tempo será dessa vez com certeza
o culpado, o responsável, por eu não
[mais permanecer
apenas pousando para uma foto...


David Cid

Uma cor a mais




A chuva passou confundindo-se com as minhas lágrimas. Meus olhos cansaram de chorar. Decidiram que não mais sofreriam. Sobre minha cabeça, percebi um tímido arco-íris entre nuvens. Quatro cores. Ainda podia sentir a umidade do ar impregnada em minha pele e o frio forte aquecendo a minha tristeza. Quatro tentativas. Estive deitado na cama, enquanto me falavam algo. Não lembro o que disseram. Apenas sei que lá estiveram por bastante tempo. Meus olhos parados não sabiam em qual direção mirar. Quatro derrotas. Nesse momento, eu desejava apenas ver o íntimo daquele abismo dentro de mim. Poder jogar uma pedra, ouvir o barulho de sua queda e, assim, calcular a distância que me separava da felicidade. Melhor seria se eu possuísse a mesma força que tive quando tudo começou. Idéia boba essa minha! Eu nunca entendi por que segui por esse caminho. Mas assim aconteceu. Assim eu estava. Naquele dia, eu era apenas o resultado da minha insignificância e o retrato da minha própria infelicidade. Tentar continuar não era meu o objetivo. Eu apenas desejava ouvir as mesmas palavras de apoio que ouvi quando tudo começou. Mas a dúvida estava ao meu lado. Desistir ou prosseguir? O meu coração estava envolvido talvez por uma nuvem de desespero, e esse mesmo coração, algum tempo depois, ainda não havia parado de bater forte, pois ele desejava uma resposta para entender o próprio destino.
Posicionei, portanto, meu corpo sob o céu, que guardava ainda sobre si aquele mesmo arco-íris. Na hora, desenvolvi uma dúvida entre os diversos caprichos da minha imaginação: quantas cores participavam da formação daquele arco no céu? Lembrei-me de ter contado apenas quatro. Quatro tentativas...quatro derrotas...! O céu, nesse instante, era como um Éden-azul infinito e imaculado. Isso me impulsionou a admirá-lo por toda a eternidade. Pedi que conservasse cada cor e que me guiasse rumo à minha resposta. Entre pensamentos resolvi confirmar a minha curiosidade: uma, duas, três, quatro e cin...cinco? Surpreendentemente, cinco! Cinco cores! Essa foi a resposta que meus olhos tanto esperaram. A resposta que me fez decidir por prosseguir. Prosseguir até o fim.
Tudo estava bem próximo e foi tão fácil e tão rápido quanto perceber uma cor a mais no céu...


David Cid

Bem próxima




1


Antes de atravessar a rua parei para descobrir de qual lugar chegava aquela bela canção. Não distante. Aproximava-se e estava bem próxima. Tive inclusive vontade de sentar e deitar para esperar aquela suave melodia chegar completamente. Deitar na calçada fria, sentir o gosto de ser um chão, no meio da multidão, e ser pisoteado por cada nota daquela poesia a ser desenhada, na avenida principal, à minha direita. Pobre avenida, tão solitária. Solitária apenas por estar só, não por desprezo ou abandono, o que não seria possível. Todos eram submissos à sua autoridade, e cada meandro seu de asfalto era uma ordem. Onde era o fim? A rua, à minha frente, perpendicular á avenida foi quem colonizou aquele ambiente. Sim, certamente sim! ela estava soterrada pelo peso do asfalto. Antes, era contínua. Agora, parte de si não mais existe. Ou existe? Superioridade ou inferioridade? Ela seria o alicerce da avenida ou apenas estava em baixo por ser tamanha a sua subalternidade? Não, a música não parou de aproximar-se. O semáforo, ainda vermelho, controlava o trânsito. Eu não podia passar. Então, eu deveria esperar. Esperar, esperar...esperar a música chegar. Esperar o rio passar...esperar o verde surgir. Bela canção, tão bem próxima, e eu não podia tocá-la. Antes pudesse eu vê-la. Não! Sentir não era suficiente; no entanto, necessário. Quem seria o maestro daquela canção? Quem me ofertaria tal melodia?

2

Não lembro bem se já eram dez ou onze horas da noite. Entretanto, tenho quase certeza de que já eram onze, por que o último trem estava passando. Até desejei estar dentro dele, bem dentro dele, para então flutuar sobre aquela avenida e chegar à estação, à minha esquerda. Mas ele passou, passou...passou bem próximo, e eu quase não o percebi. Ele também não me viu, talvez por eu estar distante, bem distante, distante do mundo, do trem, da avenida e, principalmente, de mim mesmo. O trem passou e parou. Parou longe, e eu entendi, imediatamente, portanto, a letra daquela canção.

3

A música continuou. Agora mais intensa, mais interessante. Tão romântica que invadiu o meu ser. Ela chegou e me encontrou solitário. Solitário apenas por eu estar só, não por desprezo ou abandono, no meio da avenida agora bem próxima. Ela também estava lá, bem no centro em pé, como uma perfeita canção. Era ela! Como era linda! Bem próxima, e eu podia senti-la. Como eu podia...! Ela era a dona da canção, a própria canção. Era ela, com certeza! Foi ela quem desceu do trem. Eu podia vê-la. Os meus pés me conduziram até próximo dela. Ela estava tão bem vestida...! Finalmente, chegou! A minha canção chegou! Era ela. Toquei em suas mãos para confirmar a verdade. E era verdade! Como era verdade...! E eu estava feliz por isso. Muito feliz. Tão feliz que guardei para sempre aquela canção em meu coração.


David Cid

Ex-branco

- Faz isso não que o cão atenta!
A faca, dando voltas no ar, afiada, refletia a sua alegria.
- Solta essa faca, menino danado!
A faca não parava. Madeira escura na ponta dos dedos.
A mãe, nessa hora, na cozinha, distraída, olhando para o teto com a mão na cabeça, tentava lembrar-se da receita do bolo mole. O menino à mesa balançava os pés no ar. Frutas secas, natureza morta, de mentira como ele mesmo falava. O corpo mole encostou-se, após a vertigem, lentamente no chão ex-branco, manchado pelo líquido que escorreu por cada brecha do banco escuro.


David Cid

Ao Infinito preenchido


Seria exagero pensar assim? Ela pensou. Por trás da porta branca, o ponto de partida. O início de tudo. Sim, ela também estava ansiosa. Apenas esperava a hora de entrar. Ou sair? A luz penetrou vagarosamente em seu quarto escuro. Sim, ela estava assustada. Ouviu um barulho intenso do outro lado. Não entendeu. Vozes ou gritos? Olhos fechados, mãos sobre o peito, pernas unidas, moveu-se inconscientemente. Sentiu os pés encharcados, o corpo encharcado, sentiu nojo de si. O quarto quase vazio escondeu, por um tempo, sua triste solidão. Medo ou desespero? Eram gritos! Sim, eram gritos! Conseguiu decifrar. Gritos de dor! Gritos de mulher! Ela pensou, ela surgiu. De repente, existiu. Surgiu! Surgiu como um enigma e, ao mesmo tempo, como uma esfinge. Sim, era uma esfinge carregada de mistérios. Seu corpo era o enigma. Ou uma charada? Bastava a ela descobrir e encontrar, portanto, a resposta de “quem sou eu?” ou de “como eu sou?”. Sim, ela estava também curiosa. Então, enfim, anunciaram a sua entrada-saída, que não poderia deixar de ser triunfal. A luz difratou-se por todos os espaços da porta, fazendo-a escurecer, como um eclipse solar. Esse foi o anúncio de sua chegada ao Infinito preenchido. A porta abriu, os pés tocaram o ar do corredor descontínuo e o corpo ocupou o exterior. Passos covardes e elegantes visitaram aquela realidade quadrada e guardada por trás do ponto de partida: um espaço de todos os tipos, de todas as cores, de todas as formas, de todas as raças e de todos os povos.


David Cid

Símbolo da Noite




... não percebeu quando seu pai o chamou quatro ou cinco vezes. Estava distraído, sentado no balançador enterrando os pés na areia úmida do parque da praça, segurando firme, com as mãos frias, as correntes laterais do brinquedo. O vento intenso agitou a sua cabeleira escura para um e outro lado, ao mesmo tempo em que os grãos-de-areia escondiam-se, às pressas, por trás das unhas claras. Vestido com uma roupa simples e velha sentia-se dono do si, dono do mundo, dono da vida. Mantendo o corpo imóvel, fixou os olhos em um lugar à sua direita e admirou, por um tempo, a sorte das outras crianças acompanhadas por babás. O pai, lentamente, sentou ao seu lado enlaçando as pernas com o braço, como se pedisse perdão pela falta de dinheiro. Estava desempregado há um bom tempo, e aquele era o único presente que lhe poderia “comprar”: um balançador vermelho embrulhado por uma praça velha e solitária...que não era seu, que não era sua! Sábado monótono. Aniversário tedioso. Comemorar o que? Por que? Quem inventou o aniversário? O pouco dinheiro não permitia uma festa, apenas um breve passeio para esquecer, por um instante, a sua realidade. Distantes de casa, eram dois intrusos no meio do nada, pareciam dois objetos perdidos no infinito, longe de tudo, apartados de todos. O pai levantou do chão, sentou no mesmo balançador com o filho no colo e cingiu o pequeno corpo frágil com a sua proteção, tentando persuadir-se de que o mundo, um dia, será menos injusto e tudo, por conseguinte, será diferente. Naquele berço, o menino sentiu-se pai e, ao mesmo tempo, filho de um precioso presente. Alegrou-se ao ver o céu enfeitado de suntuosas estrelas. No centro do firmamento, a face do símbolo da noite desempenhando o papel de um grandioso balão de aniversário. Fechou os olhos, repousou sobre o calor dos braços do pai, tornando aquele dia eterno em suas lembranças.


David Cid

Reflexo

Encontrou o íntimo de seu olho. Diante do espelho espatifado, a imagem impressa por trás do vidro. Ajoelhou-se. Lágrimas ocuparam o quarto vazio. Após escorregaram pelo rosto, saltaram. Ele mesmo não entendeu o porquê. A certeza de seu futuro tornou-se passado. A decepção escondia-se por trás da orla das pálpebras paradas, que lutavam contra cada piscar de olho. As manchas escuras sob os cílios expressavam o sofrimento da renúncia. O quarto escureceu, o mundo escureceu. A vida esquivou-se furtivamente. Ainda podia sentir a voz dela ao telefone dando-lhe a notícia confusa, inesperada, inaceitável, que destruiu a sua paz, a sua alegria, o seu sábado. Talvez o seu mês, o seu ano, e por que não a sua esperança? Até quando? O quando é um grande mistério criado, uma mistura de sonho e realidade. Seus pensamentos penetraram em sua alma, levando-o a ver o seu mundo inconsciente por trás do universo-vida. Tentou encontrar o erro. Em vão. Qual? Não sabia. E por que não uma nova chance? Não! Não! O cansaço gritou desesperado. Os úmidos fios de cabelo repousavam sobre o piso seco. Frio ou medo? Medo! Medo de prosseguir. A porta, à sua frente cinza e atrás amarela, era o fim do corredor próximo, por onde alguém andou antes de abri-la, entrar no quarto, unir os cacos como um quebra-cabeça, refazer-lhe a imagem, estender-lhe a mão e, por fim, erguê-lo.


David Cid

Amigo



... escolheu um. Apenas um. Seguiu. Por trás da montanha vermelha o seu objetivo. Antes, no meio do caminho, grandes pedras, pontes quebradas, animais ferozes e cercas elevadas. Passos elegantes e, ao mesmo tempo, inseguros. Medo de não conseguir, de desistir. Medo de resistir. À sua frente, de repente, alguém, já esperando o tempo descer, surge. Uniram os passos e o tempo perdido.
***
Eis o desafio comum: ultrapassar a montanha vermelha.
***
Eis o final: conseguiram.


David Cid

Cartas

Segurei firme entre os dedos para, enfim, terminar aquele amor sem valor que vivi.
Inútil pensar o assim?
Aproximei as cartas do fogo. Quis fazer com que ela sentisse o calor da chama a consumindo por dentro, como um vudu, a fim de fazê-la implorar por minha presença e, então, ajoelhar aos meus pés arrependendo-se desesperadamente, confessar o seu pecado e pedir perdão.
Sim! ela faria isso!
Eu? Não perdoaria!
O fogo, após consumir as extremidades das folhas, engoliu linha por linha, letra por letra, palavra por palavra e, contrariando Camões, ardeu em chamas bem visíveis sobre a minha mão.
As cinzas voaram pela janela poluindo o ar. Antes, pedi ao vento que as levasse às narinas dela. Assim, ela conheceria, até mesmo, o cheiro do fim do nosso amor.

A imagem

Finalmente ele foi encontrado, morto, há três quadras da delegacia, sobre a calçada coberta de folhas amareladas, desgastadas pelas intempéries do tempo. Sobre ela um tapete de outono formando abrigo às pragas noturnas. Uma multidão posicionou-se próxima ao cadáver para lamentar aquela piedade falsamente respeitosa que a tragédia costuma inspirar. As marcas de balas eram bem visíveis em seu peito esquerdo. Mãos entre as pernas encolhidas, boca ensangüentada manchando a calçada, dedos tortos e braços fortes e tatuados. Ele acabara de ser assassinado. Eu, finalmente, saberia quem matou a jovem garota daquela rua , há aproximadamente três anos. Levantei. Encostei um banco bem próximo para visualizar melhor o rosto do assassino. Surpreendentemente, a imagem começou a deformar-se diante dos meus olhos. Não conseguia mais ouvir as vozes. As pessoas foram desaparecendo uma após outra. Apenas consegui ouvir um forte barulho agudo por trás da imagem deformada. De repente, tudo sumiu. Tudo escureceu. A raiva tomou conta de mim. Levantei. Desliguei da tomada. Sai de casa e, por fim, joguei a televisão no meio da rua para que um caminhão a destruísse por completo.


David Cid

O porão

... após o fim do mundo, cheguei ao céu primeiro. Atrás de mim, eu vi uma grande multidão. Alguns ainda estavam chorando, talvez um pouco assustados. Havia uns homens feridos sem as pernas. Ah... também havia quatro mulheres desesperadas procurando os seus cachorrinhos. Aí, eu me aproximei e disse: “Quem sabe eles não estejam no céu dos cachorrinhos...!”. Elas sorriram e agradeceram. Entraram no ônibus e seguiram. Depois disso, caminhei até uma fila para receber as chaves da minha nova casa. Um senhor velho, de barba branca, disse que eu não ia ter uma casa, e sim um porão para morar. Aí, eu disse: “Tudo bem!”. Peguei as chaves, abri a porta do porão e percebi que ele não tinha escada. Aí, eu perguntei: “Como faço para descer?”. Ele respondeu: “Basta pular”. Aí, pulei e acordei. Pronto!
Foi esse o meu sonho, papai!


David Cid

O circo

A palhaça não sabia fazer rir; o palhaço, sim.
A palhaça não sabia se pintar; o palhaço, sim.
A palhaça não sabia pular nem plantar bananeira; o palhaço, sim.
A palhaça não sabia cantarolar; o palhaço, sim.
A palhaça não sabia conversar; o palhaço, sim.
A palhaça não sabia dar nó de gravata; o palhaço, sim.
A palhaça não sabia de política; o palhaço, sim.

***
Mais tarde, a palhaça ganhou um pão e o palhaço comprou o circo.


David Cid

Inspiração (acróstico)

Deitado
Agora
Viajo
Imaginando-me
Deus...


David Cid

Carrinho do sorvete


Rebeca, todo dia, saia de casa para ver o carrinho do sorveteiro
passar.
Levava consigo uma vasilha e um solitário “um real” recebido de sua mãe.
Escolhia as oito bolas.
Oito sabores.
Sorria.
- Obrigada, seu moço!
Não sabia qual era qual.
Eram todos da mesma cor e do mesmo sabor.
Importava apenas sentir o gosto gelado de sorvete na boca, que já estava derretido, quando chegava à sua casa.


David Cid

Ser

Não apenas o meu eu ou o que fui
sou o que penso e o quero ser
perdido entre o céu e a terra
em busca de esperança
vivendo o sucesso e o fracasso
escondidos no meu universo-vida.
Sou a magnitude do que existe
a essência do que virá
Sou o que passou ou sucedeu outrora
Encontro-me a cada momento
perdido entre lembranças e ilusões
sujeito à sina de cada passo escolhido
perfurado pela sombra negra da paixão
Sou o incosciente sonâmbulo das madrugadas
Encolhido nos pensamentos noturnos
preso ao meu mundo-ser
escondido em cada corpo-mundo.
Apartado da realidade que existe
Sou o conjunto da imaginação
Carregado de fantasias e mistérios
Edificado por minhas mãos
Construído após meu último limite.

David Cid

A reeleição do Lula

Quatro anos já passaram
Várias coisas não mudaram
Outras coisas melhoraram
Muitas coisas assustaram.


Quinhentos anos de tormento
Ai! Meu Deus eu num agüento
Pois foi muito sofrimento
Para um pobi desatento.

Muito tempo de aflição
Não quero mais solidão
Meu Deus, eu quero um irmão
E, por favor, me dê um pão!


Quero um emprego, pois sou pobre
Da favela, mas sou nobre
Mais imposto não me cobre
Do seu prato que me sobre.

Quero fugir, quero lutar
Num tenho nada pra ganhar
Num tenho nada pra comprar
Muito menos pra morar


Me dissero em janero:
“Nosso Deus é brasilero
Vamu ter muito dinhero
Pra sair desse buero”.


Fui pedreiro e açougueiro
Fui barbeiro e carpinteiro
Além do mais, fui padeiro
Tudo isso por dinheiro.


O grande dia ta chegando
Muitos já estão gritando:
“Vote em mim, eu sou o fulano
Sou o sicrano, sou o beltrano


Em outubro eu anulo!
Voto branco ou voto nulo?
Pra sair desse escuro
Pra mudar o meu futuro.


O meu filho quer uma escola
Uma ajuda e não uma esmola
Ir pra fora e jogá bola
Pra ganhar tudo em dóla.


Vou escolher um presidente
Meu país está doente
E precisa mais que urgente
De um governo persistente


Não quero mais mensalão
Corrupção não quero não
A maioria é ladrão
E fui preso por um pão!


Brasileiros, por favor
Eu imploro pelo amor
De Deus Nosso Senhor
Vote certo com temor!


CPI é ilusão!
Sanguessuga não é não!
Ambulância confusão!
No final, reeleição!


David Cid

Professor C.N

À sala-de-aula, um professor, após trocar o pneu furado do carro vermelho e discutir com a esposa e os filhos, chega vermelho de raiva. Apaga o quadro vermelho. Mira os alunos. Escolhe um. Depois, grita:
- Você, de vermelho, saia da sala! Agora!
Vermelho de surpresa, ele saiu.


David Cid

O mágico


Não percebeu que sua cartola estava vazia.
Pediu ao coelho que saísse.
E nada.
Ordenou a saída do coelho.
E nada.
Fingiu que o coelho havia morrido.
As crianças choraram.
E a platéia gritou:
Ressuscita! Ressuscita!


David Cid

Frustração



À meia-noite, no quarto dele, Ela entrou como uma velha.
Abancou-se. Acendeu um cigarro.
Sorriu.
Em pouco tempo, os pés dele já oscilavam no ar.
O teto frágil teimava tentando mantê-lo suspenso.
Em vão!
Caiu!
Levantou-se e gritou:
- Droga!
Ela se enraiveceu, apagou o cigarro.
Saiu como um vulto.


David Cid

No meio da estrada

Quando me lembrei de olhar para trás, a figura do corpo dela, envolvido pelo carro, já havia desaparecido na última curva. Sentimento do adeus. À minha frente, percebi apenas a imagem do crepúsculo, natureza diurna dando boas-vindas à vida noturna. Meu carro flutuou sobre a estrada. Não conseguiu tocá-la. Ou conseguiu? Não lembro. Ela parecia mais longa devido às inúmeras curvas, vez por outra intercalada por retas de asfalto. As laterais eram revestidas por árvores iguais, separadas e enfileiradas uniformemente, cobertas de músicas e pássaros melancólicos. Triste sinfonia. Berceause. Confundiu-se com a música do carro. Também lento. Desejei a infinitude daquela estrada. Melhor: a sua circularidade. Possivelmente poderíamos novamente nos encontrar. Estrada deserta sem dunas, vento forte e frio. Onde eu estava? De longe as estrelas vinham surgindo. Umas alegres, outras tristes. A noite finalmente formou-se. Lua cheia contrastando-se com o meu estado. Ela trazia sobre si a negra sombra da paixão noturna. Ventura para os amantes. Sua luz era forte, e preferi desligar os faróis do carro. Marcha lenta. Na estrada, abandonei o carro. Desci. Caminhei descalço sobre o asfalto ainda quente do dia ensolarado. Insetos notunos atrapalhavam a minha visão, até eu avistar uma velha ponte quebrada, cheia de brechas, sobre rochas de lodo encravadas no leito do rio. Ele estava calmo contemplando a noite clara e eterna, esperando alguma estrela cadente cair do firmamento para, talvez, fazer algum pedido. Qual seria? Encontrar-se quiça com o mar? Fiz o meu. Mergulhei parte do meu corpo. Esperei-o flutuar e ser levado pelas águas. Aonde eu iria não tinha certeza. A lua acompanhou-me iluminando o meu caminho. Senti-me dono do rio. O rio era o meu dono. Naveguei por ele. Abandonei a minha realidade. Caminhei sobre ele, no meio da estrada, até encontrar-me com o mar.


David Cid

O caçador de borboleta


Silente e insolente tenta pousar em meu jardim. Ladras do meio-dia!
- Pare com isso, menino! – gritou mamãe.
- Deixem as flores em paz, insetas sugadoras!
Meu canário sempre sorri agradecendo.
- Não faça mais isso, Gabriel!
- Humm...Adoro néctar de flores vermelhas!


David Cid

Terno escuro


Acordou. Passos lentos. Andou aquele dia ziguezagueando como um louco. Buscava apenas um motivo para o que teria acontecido há pouco tempo. Ela o abandonou. Resolveu partir esquecendo um bilhete amassado sobre a cama. Casamento destruído. Ainda podia sentir o rastro deixado pelo seu perfume, mesmo que ela já estivesse longe demais. Onde teria ido? Ninguém saberia informar. Sentou na calçada recordando do primeiro encontro. Inesquecível. Promessa de casamento. Amantes ao som de violino. Romantismo servido com champagne. Igreja cheia. Promessa de amor eterno, fidelidade infinita. Noiva imaculada. Véu estendido varrendo o chão do altar. Tímido sorriso alegre cor de púrpura. Respondeu sim. E você? Sim. Pode beijar a noiva. Aplausos. Sonho realizado. Lua-de-mel. Bariloche. Não queriam filhos. Dez anos de casados. Levantou-se da calçada. Entrou em casa. Abriu o guarda-roupa. Vestiu o mesmo terno escuro do casamento. Saiu. Caminhou com passos rápidos. Correu parecendo atrasado para um compromisso. Entrou em uma igreja. Ajoelhou-se. Pronunciou algumas palavras. Ergueu-se. Voltou para a rua. Fechou o terno. Estava frio. Começou a chover. Correu à estação de trem. Andou pelos trilhos. Chorou. Caiu. Deitou. Dormiu. A lua derramou a sua presença para protegê-lo por toda a noite. O calor dos primeiros raios solares o despertou de um sono profundo. Novo dia, mesma vida. Nada se fez novo. Levantou lembrando-se da esposa. Desejava apenas um “bom dia”. Conversou com a imagem dela guardada dentro de si. Caminhou procurando um destino. Ainda podia sentir as marcas do solo incômodo. Os grãos de areia roçavam com a sua pele triste, abandonada. Marcas da solidão. O corpo trêmulo tentava recuperar-se da noite fria, desgastante, exaustiva. Sentia fome, sentia sede. Aonde iria? Decidiu por uma direção: seguir a linha do trem! Talvez ela traria uma solução. Certamente chegaria a um bom lugar. Encontraria ajuda em alguma casa perdida no meio do nada. Objetivo: saciar a fome, saciar a sede. Ocupou o trilho com os pés cansados. Fez-se um maquinista. Seu corpo transformou-se em um comboio ferroviário. Seguiu em frente. Como um peregrino acumulou vontade, força. O sol anunciava a demora. Tudo se tornava diferente. O suor banhava a pele. Confundia-se com as lágrimas que brotavam dos olhos derrotados. Disputavam o espaço do rosto enrugado pelo tempo. O sapato velho pisava em falso o velho ferro do trilho enferrujado. Lambuzava-se da poeira que ascendia do chão. A boca seca, clamando por água, pronunciava o nome da esposa fugitiva. Cada passo o afastava do horizonte distante. Continuou. Creu que chegaria a um fim. Não hesitou. Desprendeu a gravata apertada. Esqueceu-se de si. Quase desapareceu no meio do nada. Perdeu-se no infinito, com passos lentos. Assustou-se, antes, com o barulho do trem. O terno escuro saltou dos trilhos despedindo-se de seu dono.


David Cid

Trapezista

1

Viu a moça bonita novamente passar.
Desconcentrou-se.
Perdeu a força.
Escorregou.

2

Recuperou o vigor.
Saltou da cama elástica.
Escondeu o rosto por trás das mãos.
Tentou não ouvir os risos e as vaias de todo o circo.

3

Culpou a moça bonita.
Ele a chamou para jantar.
Ela não aceitou.

4

Outro dia, não viu a moça bonita passar.
Concentrou-se.
Saltou da cama elástica.
Foi aplaudido por todo o circo.

5

Foi culpado pela moça bonita por estar apaixonada.
Ela o chamou para jantar.
Ele, é claro, aceitou.


David Cid

Tristeza


1

O tempo passou depressa. Levou consigo as pessoas que estavam jogando bola na praça. Eu permaneci no mesmo local. Naquele dia, estive por algum tempo sentado em um sujo banco duro e cinza. Incômodo. Até mesmo aos curiosos que passaram à minha frente: algumas mulheres de braços-dado, que diziam serem amigas; alguns casais de namorados, que proclamavam a fidelidade.
2

Duas velhas aproximaram. Sentaram próximo a mim. Cada uma estava segurando um terço na mão esquerda. Esperavam alguém passar. Ninguém passou. Olharam-me. Cochicharam. Foram embora. Caminharam como as jovens e esbarraram em um cego. Coitado! Caiu. Ninguém o ajudou a levantar-se.

3

No outro lado da praça, avistei um velho mendigo sendo assaltado por dois garotos. Eles correram felizes. Subiram em uma árvore. Esconderam-se. Roubaram também alguns frutos. O pobre velho não entendeu o esquisito sumiço dos moleques, nem mesmo ouviu os risos oriundos do alto da árvore, nem mesmo sentiu as sementes em seus ombros arremessadas por eles. Voltou para o seu lugar. Sentou. Repousou.

4

Bateu-me uma tristeza. Assim, naquele momento, bastava a mim senti-la. Ou apenas tê-la. Para isso, o público me serviu de inspiração.

5

Olhei para o chão. Herança do passado. Quantos já sentaram nesse banco? Tudo estava velho; a calçada, rachada; meu rosto, enrugado e meus pés, sujos de grama. Ela estava sob eles sendo esmagada, torturada. O vivo tapete verde morria a cada movimento meu.
6

Fim da tarde. As babás começaram a chegar com seus falsos filhos. Traziam-nos para brincarem ao léu no “parquinho”. Uma delas parecia não ter muita afinidade com o seu. Ele era um gordinho que brincava sozinho. Notei quando ele chorou, no “balançador”, após tentar alcançar o distante chão com seus pés inchados. Notei quando caiu do brinquedo, sujando-se com a areia do parquinho. Sua babá estava longe conversando com as colegas de trabalho. Enraiveceu-se após ver o gordinho com a roupa coberta de areia. Teria antes lhe alertado para brincar sem sujar a roupa nova. O tempo passou. Levou consigo as crianças e suas patroas. Deixou apenas as marcas das pegadas dos freqüentadores do parque, na areia.

7

A certeza de que o dia estava acabando lembrou a efemeridade da vida. A lua apresentou-se em um formato de vírgula. Por que? Talvez ela estivesse querendo me falar algo. Entendi que minha existência não teria um fim. As estrelas alinhavam-se misteriosamente no espaço revelando os seus poderes pictóricos. As nuvens informavam a minha inferioridade, a minha incapacidade de tocá-las, a minha humilhação diante de tamanha grandiosidade. Exibiam-se. Formando imagens não discerníveis. As árvores gritavam anunciando vida. O vento soprava as sujeiras da tarde. Transformava o local para receber o próximo dia. Talvez o mesmo dia com as mesmas pessoas.

8

Levantei do banco. Eu estava cansado. Caminhei. Meus pés estavam sufocados pelos sapatos apertados. Já era tarde. Estava frio. Minhas mãos pediram outras para se aquecerem. Desejavam uma companhia. Não encontraram. As pessoas estavam em suas prisões. Até os vira-latas noturnos esconderam-se. Silêncio absoluto. Vez por outra interrompido por alguns insetos cantadores. Individualismo do ser humano ou defesa contra os malfeitores? Madrugada triste, eterna. Monótona.

9

O tempo passou. Levou consigo a minha solidão. Levou consigo o meu corpo. Deixou comigo a minha alma.


David Cid

Virgília



Divindade da morte e guardiã dos cemitérios. O seu grito causa dor aos ouvidos dos moribundos, anunciando o fim. Dizem ser um festejo. Sempre permanecia no mesmo local. Até mesmo no dia em que o lugar encheu-se do choro dos pais do menino morto. Nascimento prematuro. De longe, ela vigiava o sofrimento dos visitantes. Estava acostumada. Inimiga dos pombos brancos. Tentava espantá-los com o seu vôo cortante. Parecia furiosa ou tentava proteger o menino? Escondeu-se por trás das árvores. Camuflava-se para assistir ao acontecimento. Despedidas concluídas. A última imagem dele foi guardada por cada um. Saudades eternas. Desceram o caixão. Flores para sempre. O frio do solo úmido arrepiava o pêlo da mãe do menino. Escuridão no abismo. Onde seu corpo estaria até confundir-se com a terra. Alguns esqueceram a curiosa disfarçada de planta, que desceu do esconderijo. Posou sobre o túmulo, como se fizesse uma prece. Permaneceu estática, mesmo após ouvir o grito do menino sepultado, que acabara de retornar do mundo dos mortos.


David Cid

Concentração


Casa negra. Portas rígidas rachadas. Ele não quer entrar, mas deve. O medo se fez carne. A onomatopéia das dobradiças assusta, lembrando o lento caminhar da solidão. Teias de aranha ofuscantes guardavam o local. Ele foi o primeiro a entrar, os outros acompanharam-no. Saudade. Conseguia ouvir o grito de sua filha furtada. O barulho embaraçoso das correntes doía, como um hino fúnebre. Melodia para os mortos. Música para a morte. Empurraram-no. Derrubaram-no. Aprisionaram-no. Ouvia-se medo. Fixou os olhos no passado, sentindo o último beijo da esposa. Suas mãos trêmulas ainda sentiam a respiração ofegante da caçula. Os pés adormeciam querendo repousar. Narinas ensangüentadas percebiam o gosto enferrujado do ar. A dor anunciava a prisão. O local encheu-se do odor insuportável da gasolina. Os dedos mortos datilografavam sobre o líquido entorpecente. A força do abdome tentava ajudá-los a fugirem do excessivo calor. O fogo comemorava consumindo a casa, e as portas largas gritavam querendo viver. O inferno fez-se presente. Os tecidos do corpo resistiam ao desgaste. Como bruxas medievais, sublimavam. O deus amarelo, cada vez mais faminto, devorava o tudo. Não perdoava. O medo foi desaparecendo, deixando os seus donos. As correntes permaneciam. Pareciam iradas. O teto simulava força. Desabou. Esmagou o deus raivoso. Sufocando-o.


David Cid

Retrato


Sentou ansiosa no sofá, ajeitou-se cruzando e descruzando as pernas. O telefone não tocava. Resolveu esperar mais um pouco. A porta permanecia fechada. O esmalte vermelho das unhas canhotas desfazia-se sob a força das rivais destras. A campainha não tocava. Ele não ligava. Ergueu-se do sofá, correu à cozinha, abriu a geladeira. Fechou. Sentou para tomar sorvete de flocos. Parecia faminta. Repetiu. Voltou para a sala. Nenhuma notícia. Aguardou. As unhas começaram a ser torturadas. Os dentes afiados arrancavam-nas dos dedos nervosos. Tirou as sandálias dos pés. Acendeu um cigarro. Pensou na discussão que tivera com o namorado. Terminaram o relacionamento há dois dias. Por que ele não ligava? Talvez ela não tivesse mais uma outra chance. Levantou do sofá. Pegou uma garrafa de whisky. Bebeu uma dose. Depois duas, três, quatro. O telefone não tocava. Voltou para sala. Alguém bateu na porta. Correu. Abriu. Ninguém. Quem teria sido? Fechou a porta. Olhou ao seu redor encontrando um retrato sobre a mesa. Era ele. Agarrou-o contra os seios. Chorou. Estava fora de si. Ajoelhou pedindo para que ele ligasse. A garrafa de whisky permaneceu grudada em sua mão. Bebeu mais um pouco. Conversou com o retrato. A garrafa esvaziou-se ao meio. Jogou-a contra a parede. Os pedaços de vidro espalharam-se no chão como uma neblina. Ela não percebeu os cortes que eles provocaram em sua pele embriagada. O resto de bebida banhou o sofá sujo como chuva. Procurou a cartela de cigarro. Não conseguiu levantar-se do chão. Sentia-se cheiro de álcool por todos os locais da sala. Sentia-se cheiro de derrota. Sentia-se cheiro de infelicidade. Arrastou-se ao encontro do cigarro. Levou consigo o retrato amassado contra os seios. Onde estaria o isqueiro? Achou. Estava sobre o sofá banhado. Esticou o braço tentando alcançá-lo. Os dedos trêmulos tocaram no isqueiro azul. Conseguiu encostar-se no sofá após muito esforço. Acendeu o cigarro. Olhou para a chama produzida. Levantou à altura dos olhos. Jogou o cigarro. Segurou firme o retrato com a mão esquerda, aproximando-o do fogo. A chama consumiu em desespero a imagem dele. Em poucos segundos, formou-se um pequeno incêndio em suas mãos. Não percebeu a dor do calor. Estava aflita, implorando para si mesma que o telefone tocasse. Deixou cair o retrato sobre o sofá. Encostou-se. A chama amarela animou-se ao ver o resto de whisky. Não perdoou. o fogo espalhou-se. Ela embebeu-se com a fumaça. Deitou. Desesperou-se. Chorou. Gritou para dentro de si. Estava sem fôlego. Implorava por uma ajuda. Implorava para que ele voltasse. O seu grande amor se foi. Não o veria novamente. Onde estaria? O calor estava consumindo a sala. Consumindo os móveis. Consumindo tudo. Encostou a cabeça no chão. Estava sem força. Tentou levantar-se. Não podia. Começou a ouvir o telefone tocar. Era ele! Esticou o braço. Em vão. Tudo foi desaparecendo à sua frente. Faltava luz. Faltava vida. O telefone continuava tocando. Deitou como um anjo derramando uma lágrima. O fogo espalhou-se. A campainha começou a tocar. Bateram na porta. Derrubaram-na. Era ele! Ela podia vê-lo por trás do incêndio.
Repousou, como uma deusa, sussurrando contra o chão:
- Meu amor, eu te amo.
Desmaiou.


David Cid

Solidão


Senti um vento triste. Tão lento que já não cantava mais. O vendedor de frutas não passou naquele dia. Seria culpa da chuva? Acordei com o barulho da porta do meu quarto. Alguém teria entrado na madrugada? Talvez. Meus livros amanheceram desorganizados sobre a mesa. Lembro-me de ter empilhado-os durante o dia. Eu estava cansado e também com fome. Permaneci deitado. Imóvel olhando para o teto. A cozinha ainda repousava do almoço do dia anterior. Um churrasco para comemorar o meu aniversário. Expostas encontrava-se uma natureza morta. Frutas de plástico acompanhadas de bananas estragadas. O último apartamento do prédio de frente era o que parecia de mais superior naquele ambiente. Na minha sala, ele era apenas um reflexo que chegava do espelho aos meus olhos. O piso da casa estava sujo, marcado ainda pelas sandálias que se foram após o fim da festa. E que festa! Parece até que levaram consigo a minha alegria. E por que não? Quase me esqueci de comer o pedaço de pão que roubei de cima da geladeira vazia. Estive sentado no mesmo sofá por muito tempo, enquanto isso tentei ouvir o que existia por trás da solidão, por trás do silêncio. O tempo demorou tanto a passar que desisti de esperar. Esperar pelo que? Esperar por quem? Talvez a vida não me apresentaria mais novidade alguma. Talvez ninguém mais apareceria. Enquanto isso o telefone tocou quatro ou cinco vezes. Alô? Ligação errada. Já era quase meio-dia, quando resolvi voltar para o meu quarto ao som arrastado do latido do velho cão do vizinho. Fechei a janela para fugir do sol. Meu quarto era virado para o oeste. Deixei com que as persianas caíssem livremente e escondessem os atrevidos raios restantes que tentavam invadir o meu quarto. A porta fechei para isolar o local de qualquer contato com o exterior. Não quis a cama. Ela estava quente. Deitei no chão frio encurvando-me, tentando relembrar a posição fetal e meus primeiros movimentos, procurando recomeçar minha vida a partir daquele instante.


David Cid